quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

A fotogenia da tristeza



A alegria, por mais beleza que traga em si, jamais vestiu tão bem a literatura quanto a tristeza. Essa última, evidentemente, sempre acompanhada de seus parceiros indissociáveis: a passionalidade, o desespero e a solidão, também extremamente belos e fotogênicos num álbum literário.
A euforia que a alegria representa, ainda que em maior ou menor escala, jamais será páreo para uma cena de abandono, para a profunda solidão que segue o som de uma porta se fechando, para o pranto visceral incomparável a um choro de felicidade.
O incesto cometido pelas almas-irmãs - literatura e tristeza - é vital e essencial para que a literatura, como arte, atinja, comova, corroa e afete perpetuamente seus leitores.
Estou corroída até a alma. Não há mais salvação. E se houvesse, eu a daria de presente de natal tardio ao primeiro que passasse.

PS.: Em um comentário no Do Amor, Laico Impropério, de Edgar Sollers, eu disse que a tristeza e a literatura são almas-irmãs que cometem incesto - ou algo que o valha. Ele, o Sollers, afirmou acreditar que essa frase mereceria um post. É, eu resolvi acatar a idéia. :)

sábado, 22 de dezembro de 2007

Dos Diálogos Memoráveis VII*



- Por que nos separamos?
- Porque você me pedia em casamento uma vez por semana.
- Muitas mulheres adorariam isso.
- Mas eu não sou uma delas.
- É, és uma das mais complicadas.
- Pode ser.
- Talvez seja isso que a torna tão fascinante.
- Às vezes não sei se você gosta mesmo de mim ou se isso é teimosia.
- Eu ainda lembro do teu cheiro.
- Você é um predador, não sabe lidar com o fato de ter deixado uma presa escapar.
- Teus olhos brilhando... teu suspiro... você dormindo é a visão mais linda que eu tenho na memória.
- Você é um vaidoso... feri seu orgulho quando o abandonei.
- Você feriu mortalmente a minha alma quando me deixou. Mas a porta já tinha se fechado quando eu soltei o choro mais desesperado da minha vida. E você não estava lá pra ouvi-lo. E talvez não ouvisse mesmo que estivesse.

* Baseado em um diálogo, apenas um diálogo...

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Dos Diálogos Memoráveis VI*



- Você sabe que eu nunca te esqueci.
- Sei?
- Já faz dois anos e isso não muda. Não achas que isso significa alguma coisa?
- Deve significar...
- Mas nada que importe ou que você acredite, não é?
- Não dá pra acreditar em você.
- Esse sempre foi o seu problema.
- Era só você não ter aberto precedentes, que eu não teria razões pra pensar assim, certo?
(silêncio)
- Eu tenho um tesão absurdo por ti, sabes disso, mas juro que não queria te levar pra cama agora. O que eu queria, de verdade, era que nós sentássemos num banco de praça qualquer e tu olhasses pra mim sem esse sorriso irônico no rosto por cinco segundos e acreditasse em algo que eu dissesse.

* Baseado num diálogo irreal.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Ego


Parte 3


Júlia entra no carro e se depara com uma rosa sobre o assento. Sorri.
- Você é um dos maiores predadores das rosas vermelhas.
- Mas é por uma boa causa. Só esse sorriso já valeu a pena. As rosas compreendem.
Eles se cumprimentam com um beijo no rosto. Ela sente o cheiro da loção pós-barba, ele do shampoo, do perfume e do hidratante. Perfeitamente diferenciáveis entre si.
Pedro liga o carro.
- Já escolheu o lugar?
- Desde que a vi naquela festa chata, com gente chata.
- Sei...
- Sério! Pensei imediatamente: tenho que levar esta mulher ao meu restaurante preferido.
- Certo, vamos a ele então.
***
O maître puxa a cadeira para Júlia. Ela olha em volta, com admiração. O lugar tem a aparência de um palácio grego, devia ser caríssimo. Se Pedro tencionava impressioná-la, fora bem sucedido. O ambiente era de um luxo esmagador. As colunas suntuosas e os uniformes impecáveis dos garçons fizeram Júlia pensar que deveria ter caprichado mais na produção.
Pedro lia o cardápio com uma familiaridade que lhe pareceu artificial. Júlia poderia apostar que era a primeira vez que ele entrava naquele restaurante.
- Você sempre vem a este lugar?
- Sempre. Desde os quinze anos... meus pais adoravam isso aqui. Eram amigos do dono. Viemos à inauguração. O garçom lançou um olhar risonho em direção a eles.
- Preciso retocar a maquiagem, já volto. Levanta-se e se dirige ao banheiro. Antes de entrar, pergunta ao barman:
- Este restaurante existe desde quando, senhor?
- Completa dois anos no mês que vem.
- Dois anos? Obrigada.
Júlia volta à mesa com um sorriso enigmático, que Pedro nota, mas teme perguntar a razão. Ele a serve do vinho que pediu. Provavelmente a garrafa mais cara do menu. Ele parecia empenhado na tarefa de impressioná-la. Tal pensamento a fez olhá-lo cinicamente e dizer:
- Desde que idade você disse vir aqui mesmo?
- Não lembro ao certo, acho que desde os quinze, ou antes. Mas sem nostalgia... Você esperava as flores?
- Não... na verdade você nem deveria ter o meu endereço.
- É, temos amigos alcoviteiros em comum.
- Eles vão levar uma bronca.
- Vão?
Sorve o vinho e o olha provocadoramente.
***
A caminho do carro Pedro coloca o braço em volta da cintura de Júlia. Com a mão na maçaneta, hesita. Encosta-a ao carro e afaga seus cabelos.
- Não é ético se aproveitar de uma mulher bêbada.
- Eu nunca disse que sou ético.
Beijou-a longamente, pressionando seu corpo contra o dela, ofegante. Júlia o afasta gentilmente com as mãos sobre seu peito.
Pedro posiciona seus lábios junto ao ouvido dela e sussurra:
- Você esteve linda a noite toda. Perfumada, graciosa, atraente... não sabe o esforço que eu fiz pra me controlar.
- Imagino. Agora me leva pra casa?
Ele a olha sem entender. Ela abre a porta do carro, entra e coloca o cinto de segurança.
***
- Se eu me oferecer para entrar, você se ofende?
- Não, mas não aceito. A noite foi ótima, o vinho e o jantar estavam excelentes. O restaurante é adorável e você foi muito atencioso e cavalheiro.
- Posso te ligar?
- Se quiser, pode sim. Boa noite.
O som da porta do carro se fechando e em seguida o da porta da casa dela, que sequer olhou para trás, ficaram ecoando em sua mente. O trajeto para casa foi automático. Não entendera nada. Como ela podia mudar assim em frações de segundo? Talvez fosse melhor mudar a estratégia. Ser gentil demais não funcionara bem.
***
Com o removedor de maquiagem numa mão e o telefone na outra, Júlia narra a uma amiga a sua mais recente peripécia anti-romântica e gargalha.
- É, querida, resolvi experimentar novos métodos. Os antigos já não me satisfazem mais.

Dezembro tem dessas coisas


Eu que sempre fujo dos amigos secretos da vida, resolvi entrar num entre blogs. Não custa se render a algumas fim-de-anices de vez em quando.



O meu amigo secreto é o Luz de Luma, yes party!. Eu nunca havia estado lá, mas se você gosta de política, economia, é o lugar ideal. Há também posts sobre amenidades, impressões pessoais e afins. Um lugar interessante, cheio de links e coisinhas para emendar o caminho.

Quem me tirou foi o povo do Toscos e Ralados, e o comentário foi feito aqui. Obrigada, meninos, vocês foram criativos e muito fofos.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Aliterácio


O mar
Ah, mar...
Amar.
Martírio
Mar lírio.
Amortecer
Amor tecer.
Amortizar
A morte usar.

Muito
Luto
Maus
Meus.


PS.: Agradecimentos a Luciana Vasconcelos pela sugestão de uma das palavras que eu, obviamente, não vou lembrar qual. :P E também ao palestrante que discursava na hora em que eu escrevi o poema, se estivesse interessante a sua fala, eu não teria me distraído e escrito nada. :D

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Melancolia


(Fotografia de Eduardo Trindade, colhida no site Olhares.com, de título Ad infinitum. Edu, espero que não se importe, sei que não pedi permissão, mas era pra ser surpresa mesmo.)


Ontem, saindo do trabalho, vi uma moça sentada na calçada, com a cabeça baixa, soluçando. Um soluço daqueles que independe de nós, que saem sem nos consultar e sacodem nossos corpos descontroladamente (e não estou falando de sexo). Depois, ainda no mesmo quarteirão, um moço com um olhar de cortar o coração, triste de doer a alma de quem cruzasse os olhos com os dele por meio segundo. A seguir, um casal brigando. A moça estava com ar de indignação e de quem é portadora de uma inquestionável razão. O rapaz, de olhar baixo, me deixou confusa entre uma confissão de culpa ou aquela clássica estratégia de dar razão ao outro para abreviar a discussão.
Parado no sinal, um taxista ouve “Solidão é lava, que cobre tudo...”. Um clima de melancolia generalizado... Olhei pro céu: nublado. Chego em casa. Não tem energia elétrica. Acendo umas velas, incenso e um cigarro, que não sei de onde tirei, já que não sou fumante, mas foi muito oportuno, a ocasião pedia um cigarro. Sempre achei fumaça e fogo fascinantes. Rendem boas fotografias.
Toca o telefone. Um amigo que eu não falava há meses. Duas horas de conversa animada, risadas, lembranças, risadas, notícias e mais risadas. Desligamos. Entretanto as risadas não apagaram a contagiante melancolia coletiva... Entristeci. Ao menos aquele resto de dia. Por todos os tristes que vi. Contemplo a vela, a sombra que projeta na parede. O incenso já cheira a tristeza. A fumaça faz movimentos cabisbaixos. As sombras parecem esperar por algo. Choro.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Dos Diálogos Memoráveis V*



Sexta-feira à noite, sem grandes e boas propostas de diversão, ela resolve fazer o programa dos solitários: pega duas garrafas de prosecco que ganhara de presente de uma amiga no aniversário, uma taça e liga o computador. Começa a beber, ler algumas coisas, rir mais descontroladamente de outras, responder emails com mais desinibição que o normal, com um humor mais ácido do que quando está sóbria (não que ele já não o seja). Quando ela está abrindo a segunda garrafa, eis que surge uma janelinha com aquele aviso: ELE entrou.
Com um sorriso no canto dos lábios, ela o cumprimenta, falam de amenidades a princípio. Mas ele estranha:
- Você está bem?
- Estou. Por quê? Não pareço bem?
- Não sei... me parece meio diferente hoje.
- Diferente pra melhor ou pra pior?
- Ah, diferente.
- Defina diferente.
- Mais soltinha, acho.
- Hum... é que eu já estou na segunda garrafa de prosecco.
- Estás bebendo com quem?
- Sozinha.
- Sozinha? Interessante...
- É?
- É, é sim... já estás com ar de bêbada.
- E estou.
- Humm... se eu estivesse aí perto pra me aproveitar dessa sua embriaguez...
- Mon cher, você não precisa disso não...
- Não?
- Não, claro que não... pra você eu daria sóbria, não precisarias me embebedar.
- Nossa... essa vai entrar pro hall das frases memoráveis que já ouvi de uma mulher.
- Guarde essa. Porque pra dar pra você eu não preciso estar embriagada, mas pra dizer isso, assim, a seco sim... Não falemos sobre isso amanhã.

* Baseado num diálogo virtual, desta vez.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Escritores da Liberdade



Muito lindamente, a Mila, do Caixa de Sapato, me indicou para o prêmio Escritores da Liberdade. Devidamente agradecido o prêmio, me resta indicar outros dez blogs para que também sejam donos do prêmio.

Vamos a eles, em ordem alfabética:

Cena 7, de Lúcia Ramos, que traz textos de uma beleza ímpar e de uma sensibilidade invejável;

Devaneios & Loucuras, da B., que já é portadora de vários prêmios, mas desse ainda não. :D Escreve textos que mexem com nossos instintos mais sacanas e humanos;

Do amor, laico impropério, Edgar Sollers, autor de textos hipnotizantes, de finais surpreendentes e de uma força incrível sobre o leitor;

Etc..., de Sebastião Moura, que tem atualizado pouco (é, é uma bronca), mas vale muitíssimo a pena conferir. São textos sobre tudo e sobre nada, muito bem escritos e sempre criativos;

Mulheres Sob Descontrole, de Samantha Abreu, que escreve também em outros blogs - que estão, inclusive, entre os meus indicados -, mas essa série é uma das minhas preferidas, são mulheres de todos os tipos, menos "normais";

No Balaio, escrito por Samantha Abreu, Anderson Loff, Rafael Avansini e Ricardo Lima. Tratam de arte nas mais variadas formas: literatura, música, cinema, teatro e o que mais ocorrer;

Onabru urbanO, projeto idealizado por B., que consiste num romance escrito a quatorze mãos. As mãos são: as da própria B., Caroline Bigarel, Laura Inafuko, Milene Maciel, Paulo Fernando, Sebastião Moura e Thiago Kuerques;

Sim, senhora!, escrito pelas jornalistas Jô Beckman e Lari Nakao, muito bem escrito e bem humorado sempre;

Strawberry Fields, de Gabriele Fidalgo, com textos lindos e tocantes, além de muitíssimo bem elaborados e de uma literariedade bastante peculiar;

Versos de Falópio, escrito por sete mulheres e suas crias poéticas, segundo as próprias. E que, como elas mesmas descrevem, geram o óvulo veemente, concebem o verso, um filho... Lindo demais, é pra ser blog de cabeceira, tem postagens diárias, cada uma delas é responsável por um dia da semana. Espetáculo. As mulheres que compõem o septeto são: Juliana Hollanda, Karla Jacobina, Samantha Abreu, Gabriele Fidalgo, Laís Mouriê, Syssy Virtuale e Martha Galrão.

Nossa, que difícil... resolvi usar praticamente os mesmos critérios da Mila: blogs que são escritos com sensibilidade, naturalidade e criatividade, além de não fazerem parte da corrida por mais comentários e visitantes.

Não esqueçam que quem foi indicado deve indicar outros blogs para o prêmio também. Só acho que o número de indicados deveria cair pela metade. São vocês que sabem...

domingo, 25 de novembro de 2007

Ego

Parte 2


Conheço este tipo de mulher que pensa que consegue dobrar todos os homens, pensou enquanto ligava para a floricultura. Ele adora desafios. Sente-se doentiamente tentado a mostrar que pode conseguir o que quiser. Não que isso seja uma verdade, mas não lhe custa almejá-la. E, afinal, ele nunca fora muito adepto da humildade e menos ainda da modéstia, no máximo da falsa modéstia. Era dono de um donjuanismo barato, que beirava a pieguice. Ele sabia disso. Mas, enquanto funcionasse, não precisaria mudar.
Acordara inspirado. Havia escolhido uma presa interessante: uma mulher sofisticada, balzaquiana, que consegue falar sobre qualquer assunto sem se embaraçar, ainda que não seja profunda conhecedora na área, disposta, disponível aparentemente e com o dom supremo de iludir, afeita à condição de apaixonante, não de apaixonada. Se ele acreditasse em almas gêmeas, diria que ela é a sua. Tão semelhantes, com as mesmas intenções, seria uma luta difícil, mas não desleal e, por isso mesmo, muito excitante. De igual para igual. Um duelo entre egos. Entre mestres.

- Bom dia, eu gostaria de mandar um buquê de rosas vermelhas.
- Quantas rosas, senhor?
- Duas dúzias.
- Certo... preciso dos endereços do destinatário e de cobrança e outras informações...
- Ok, mas, antes disso, escreva algo bonito no cartão. Não interessa o quê, apenas impressione. E no final convide para um jantar. Hoje à noite... É, é isso.

À tarde, ele liga a televisão, assiste a um programa sem atenção. Abre uma revista com a mesma concentração que dedicou à tevê.

- Alô?!
- Oi...
- Sim?
- Você recebeu as flores?
- Flores? Ah, as flores... recebi sim. Obrigada.
- Você gostou delas?
- Muito, são bem bonitas.
- E o convite no cartão? O que você me diz?
- Hoje à noite, não é? É... aceito.
- Então passo pra te buscar... às 20h, tá bom assim?
- Tá, estarei pronta.
- Até mais tarde.
- Até.
Desliga e sai cantarolando uma música antiga que não lembra onde ouviu, mas que tem certeza de que ficará em sua cabeça nos próximos dias.

Quarenta minutos antes do horário combinado, ele entra no banho. Faz a barba, arruma os cabelos, analisa-se, com um ar vitorioso, diante do espelho.
Liga o carro e dirige-se à casa de Júlia. Ao chegar, aguarda alguns instantes. Buzina.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Correspondência


Meu querido,

Lembro com uma clareza incomum de nossas conversas, nossos olhares tímidos no começo, os sorrisos que diziam muito e nos divertiam menos do que encantavam. Dos ciúmes bobos e infantis que nos cegavam para a beleza das outras coisas. Lembro do quanto você se divertia com meus presentes enigmáticos que você só ganhava se os desvendasse. Os livros que nos demos e emprestamos, esses eu tenho até hoje, numa prateleira especial. Cuido deles como de filhos, animais de estimação ou algo que o valha.

Recordo-me, não sem dor, do quanto fomos felizes. As viagens que fizemos, as fotografias que tiramos... um dossiê de uma vida. E quando penso em tudo isso, me pergunto como você pôde me abandonar... deixar tudo que você dizia amar e querer para sempre. Por isso eu não te perdôo. Perdôo você pelas brincadeiras infames em horas impróprias, pelas risadas nos meus momentos de mau humor, pelas vezes que me acordou de madrugada para jogar xadrez porque estavas insone, pelos livros que me pediu emprestado e não leu, pelo meu cd preferido que você deu de presente a um amigo e por tantos outros pequenos delitos.

Você sabe que mereceu isso, não sabe? Eu avisei que não toleraria ser abandonada. O seu problema foi nunca ter levado a sério. Estou indo ao cemitério te deixar flores, como faço todos os anos. Comprei copos de leite, sei que você gosta. Esta carta vai acompanhá-los. Não é a primeira, mas talvez seja a última. Conheci um rapaz. Ele parece interessante, gosta das mesmas coisas que eu, tem planos semelhantes... acho que temos potencial para dar certo. Se no ano que vem não chegarem flores para você, é porque eu me mudei. É possível que eu vá morar em Istambul. Surgiu uma boa proposta de emprego lá, estou analisando. Ele se ofereceu para ir comigo. Talvez eu aceite.

Adeus, querido.

Feliz aniversário.


Sua Elfa.


quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Ego


Parte 1

Seria digna de um lugar no Guiness se conseguisse contar quantas vezes havia feito aquilo, ela pensou. Estava nua sobre a cama, com os pés cruzados e as pernas levantadas, fazendo um triângulo retângulo com a parede. Olhou as flores sobre a escrivaninha. Resolveu que iria mudar. Mudar drasticamente. Seria uma mulher de família, teria um marido, filhos e tudo que isso implicasse. Ficou entediada só de pensar. Respirou fundo. Ergueu-se e foi tomar uma ducha.
Durante o banho o telefone toca insistentemente. Ela sai molhando todo o quarto, enrolada numa toalha encharcada.
- Alô?!
- Oi...
- Sim?
- Você recebeu as flores?
- Flores? Ah, as flores... recebi sim. Obrigada.
- Você gostou delas?
- Muito, são bem bonitas.
- E o convite no cartão? O que você me diz?
- Hoje à noite, não é? É... aceito.
- Então passo pra te buscar... às 20h, tá bom assim?
- Tá, estarei pronta.
- Até mais tarde.
- Até.
Volta ao banho cantarolando algo ininteligível. É, até que poderia ser boa idéia. Passa a tarde toda pensando na melhor maneira de fazer o que mais sabe: iludir. Olhar tímido, sorriso jovial, achá-lo extremamente engraçado e, por fim, não convidar para entrar no primeiro encontro. É, deve ser suficiente por enquanto... Não. Ela havia decidido tentar fazer diferente desta vez. Mas e a diversão? Melhor esperar para ver como as coisas se encaminham. Quem sabe ele a convence a mudar. Parece interessado. Sorri, desdenhosa. Seu prazer ao ver um homem sofrer por ela, implorar que ela não o deixe é quase equivalente a um orgasmo. Só não há equivalência porque é melhor.
Deita-se, contempla com um olhar perdido o teto. Abre um livro. Dorme.

Às 19:30 está arrumada, maquiando-se. Prende os cabelos, solta... nada a agrada. Resolve ir com eles soltos e sem grande produção. Olha-se. Parece bem. Finaliza a sombra e o batom. Perfuma-se. Não muito, para não sufocá-lo e nem a si mesma. Ainda é cedo. Dirige-se à cozinha. Abre a geladeira. Morde uma maçã.
É quando, então, ouve uma buzina. Apanha as chaves sobre a mesa, a bolsa e apaga as luzes.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Dos Diálogos Memoráveis IV*



Eram namorados, amantes, apaixonados. A grande diferença de idade por diversas vezes foi o mote de brigas. Ele, aos 41 anos, queria sossego, estabilidade e segurança. Ela, aos 20, queria apenas viver, sentir, experimentar, ainda que o mesmo homem, de várias formas, pelo tempo que julgasse agradável.
Ele muitas vezes insistiu que as pessoas olhavam diferente para eles na rua. E ela sempre respondia que não sabia, porque não olhava para elas, apenas para ele e, no começo, para o chão, para não tropeçar. Até descobrir que era uma preocupação vã, ela não corria esse risco, flutuava quando estava com ele. Ele sorriu, descrente.
Certa noite, sem nenhuma data especial, ele resolveu dar-lhe flores de presente, preparar um jantar, luz de velas, tudo... perfeito. Quando já estavam na cama, ofegantes e com a garrafa de vinho tinto vazia ao lado da cama, ele disse:
- Espera, eu vou buscar uma coisa.
Ela se senta na cama envolta pelo lençol.
- Pronto.
Ele pega uma das mãos dela, olha no fundo dos seus olhos e diz:
- Casa comigo?
Abre uma caixa com um par de alianças. Ela o olha com um olhar interrogativo.
- Eu quero ter filhos contigo.
Ela levanta da cama, começa a se vestir, fita-o com os olhos marejados. Coloca a mão no seu rosto, dá-lhe um beijo sofrido.
- Eu te amo. Muito. Mas você conseguiu estragar tudo.
Sai. Bate a porta. E nunca mais volta.

* Baseado num diálogo muito, muito real.

domingo, 11 de novembro de 2007

Dos Diálogos Memoráveis III*


Eles mal se conhecem, mas cada vez que se encontram passam tantas horas conversando, que não notam o tempo passar. O sol se põe, as pessoas das mesas vizinhas pagam suas contas, se retiram, outras chegam, passam longo tempo, vão embora e eles nem percebem.
Relacionamentos são sempre tema básico em qualquer conversa, eles, obviamente, não tinham pretensão de ser exceção:
- Que tipo de mulher te atrai?
- Não tem muito um tipo físico, mas precisa ser interessante, ter o que dizer. E tu? Que tipo de homem te interessa?
- Ah, também não tenho um estilo de homem. Se for inteligente já tem grandes chances. É claro que fisicamente deve haver algo que me chame a atenção, nada em específico, em cada um eu identifico algo próprio. Mas homem tem que ter cara de cafajeste.
- Como é cara de cafajeste? Pergunta, rindo.
- Se eu falar vou ficar com vergonha.
- Ah, fala...
- Não, não... vou ficar sem graça.
- Por favor...
- É assim... Ela indica ele próprio.
- (Enrubescendo) Somos dois com vergonha então. Disse ele baixando os olhos, com um sorriso tímido.
- ...
Curto silêncio.
- Errr... então, vamos mudar de assunto. Ela diz, sorrindo.
- É...

(...)

* Baseado num diálogo tão real quanto os demais.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Catalepsia




Meu coração está de férias.
Férias retroativas.
Ele e eu resolvemos deixar o Amor em paz,
dormindo profunda e mansamente
ao lado de seus companheiros inseparáveis:
o Ciúme, a Posse e a Mágoa.

Assim eles não me tiram o sono,
nem meu tempo,
minha sanidade...
E deixam meus pensamentos livres
Livres para o ócio criativo.

Relações leves têm sua beleza.
E suas vantagens.
Fico com elas por tempo indeterminado.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

A Última Vez

- Você sempre faz isso! Mesmo sabendo que me magoa...
- Cláudio, foi você mesmo que propôs que nós abríssemos o nosso relacionamento. Você não sabe o que quer!
- Eu sei perfeitamente o que eu quero. E definitivamente não é ir ao meu restaurante preferido e encontrar a minha mulher jantando com outro cara. Tanto restaurante nessa merda de cidade! Por que o que eu mais gosto?
- Ele que propôs.
- E você não sabe dizer não?
- Por que iria dizer não? Quem estava cansado e sem disposição pra sair hoje?
- Mudei de idéia, ora!
- E eu tenho bola de cristal? Desenvolvemos o poder de nos comunicarmos por telepatia?
Ele senta no sofá com a cabeça entre as mãos. Chora.
Ela se aproxima. Abraça-o.
- Eu não quero mais isso. Não assim.
- Então vem aqui que a gente faz de outro jeito.
Ela tira o vestido e se deita no chão. Está só de lingerie. Preta. Contrastando lindamente com a sua pele muito branca. Olha-o, provocante.
Ele a fita com um olhar sofrido. Apanha seu paletó no espaldar de uma cadeira próxima à sala. Bate a porta sem olhar para trás. E desce pelas escadas, desnorteado. Chora copiosamente, prometendo a si mesmo, pela décima quarta vez ser essa a última vez que ele tolerou as inconstâncias e perversões dela e que nunca mais a procurará. Nunca mais.
No dia seguinte, eles jantam juntos e apaixonados no mesmo restaurante de costume, o preferido dele:
- Que bom que você parou com aquela bobagem.
- Bobagem não... E saiba que foi a última vez. A última.
- Sim, claro. A última...
Ela sorri e dá-lhe um beijo.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Dos Diálogos Memoráveis II*


Ela sai para assistir a uma programação cultural, está a caminho da casa de uma amiga que irá acompanhá-la. Ao parar no semáforo, canta com empolgação a música que toca no seu carro, batuca no volante, realmente sentindo a música. No carro ao lado, um homem a observa, divertido. Ela sente que está sendo observada. Olha para o lado e vê aquele sorriso iluminado. Enrubesce. Sorri timidamente. O sinal abre.
No próximo semáforo, ele consegue emparelhar novamente com ela. Sorrisos, olhares tímidos dela. E perturbadores dele.

- Você conhece a música Sinal Fechado?
- Conheço, mas... "Vai abrir..."
- "Por favor, telefone, eu preciso beber alguma coisa, rapidamente". Joga seu cartão para dentro do carro dela. "Quando é que você telefona? Precisamos nos ver por aí."
- "Pra semana, prometo talvez nos vejamos. Quem sabe?"

E o sinal abriu.
.
* Também baseado num diálogo real.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Dos Diálogos Memoráveis*


- Que foi?

- ...

- Eu disse alguma coisa que te chateou?

- Não, não.

- Então... Complete a frase (risos).

- É que os meus olhos ficam gagos diante dos teus.

- ... (corando)

- Os teus olhos são mestres em retórica. Os meus ficam tímidos, gaguejam diante de tanta espontaneidade e firmeza.



(...)



* Baseado num diálogo real.
.


Pintura: Sleeping Bather, Pierre-Auguste Renoir, 1904 (há controvérsias sobre o nome da obra, mas não sobre a autoria).
.
PS.: Este é o primeiro texto de uma série que tem o objetivo de eternizar bons diálogos que eu vivi, presenciei ou me foram narrados. Considerem, quando se tratar de algo comprometedor, que a personagem é uma amiga minha. ;)

domingo, 28 de outubro de 2007

Das flores e sua efemeridade


Li algum texto em um lugar qualquer que eu definitivamente não vou lembrar qual foi, que dizia: flores não são um bom presente. Fiquei pensando sobre isso. Sempre quis mandar flores para um homem. Mas sei que isso dificilmente será visto com olhos bons. Vai parecer pilhéria. Não sei ao certo quem convencionou que flores e mulheres são almas gêmeas. Não que não o sejam de fato. Mas poderiam ser almas trigêmeas, por que não?
A alegação de quem não gosta de receber flores como presente é sempre a mesma: não ficam para a posteridade, são efêmeras, caras e funcionalmente inúteis. É uma maneira prática de ver as coisas. Materialista, no mínimo. Insensível, para ser gentil.
Não há nada mais simbólico que flores. Mesmo livros, que são também ótimos presentes, às vezes só lembramos de quem ganhamos quando abrimos para ler a dedicatória, quando ela existe. Flores não. Sabemos exatamente de quem as recebemos e em que ocasiões.
É certo, entretanto, que elas só têm um significado quando a pessoa que nos mandou significa muito para nós ou tem potencial para tal. Caso contrário, elas não terão sequer sua água trocada e envelhecerão precocemente. É triste, mas é verdade. As flores, seu valor e o tratamento dispensado a elas estão condicionados ao remetente.
Mas elas também são boas para se autopresentear. É um bom hábito. Experiência própria. Recomendo. Não resista a uma bela rosa. Compre-a. E cuide dela, mesmo sabendo que ela não resistirá muito. E fique ao seu lado até que ela fique cabisbaixa. Embalsame-a, se puder, mas só na memória. O encanto das flores reside justamente em sua beleza efêmera. E na quantidade de belíssimas metáforas que isso pode inspirar.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Recomeço


Beatriz entra em seu apartamento, como todos os dias, às 18:38. Dessa vez encontra móveis quebrados, livros jogados no chão, vasos estilhaçados. Pensa se tratar de um assalto e procura, nervosa, seu celular dentro da bolsa. Liga 19...
- Desliga! Diz um homem do qual ela só consegue ver a silhueta.
- O que você quer?
- Desliga!
- Ok, ok... estou desligando... Ela coloca o aparelho sobre o sofá.
- Senta!
- Essa voz... não acredito!
- Cala a boca, sua vadia!
O homem sai da penumbra e ela confirma suas suspeitas. O olhar de medo dela é recebido com um tapa que ecoa pelo pequeno apartamento. Beatriz põe a mão no rosto e lança um olhar de ódio para o homem a sua frente. Ele, com um sorriso no canto dos lábios e uma pistola na mão esquerda, a olha com ar superior.
- Você achou mesmo que a humilhação que me fez passar não teria volta?
- Maurício, isso já faz dois anos! Você disse que tinha me perdoado...
- Perdoar? Você é mesmo muito cínica.
- Ah, quer saber? Se vai atirar, atira logo e acaba com esse papo de marido traído, que de coitadinho nessa história você não tem nada... Disse Beatriz se levantando e indo à cozinha pegar uma cerveja.
- Então o culpado da sua safadeza sou eu agora?
- Safadeza? Eu só transei com meu chefe e com dois amigos seus, meu querido. Podia ser pior. Ou melhor, depende do ponto de vista.
- Eu sempre odiei essa sua ironia.
- E eu sempre odiei o seu cheiro, a sua voz, a sua barba sempre bem feita. Não sei nem por que me casei com você.
- Eu sei, porque você queria uma pessoa que lhe apoiasse quando seus pais morreram. Foi só pra isso que eu servi.
- Serviu? Nem isso você conseguiu, seu verme! Anos de terapia... Eu era uma menina... Sabe que aquela terapia era muito mais pra agüentar aquele casamento morno que a gente tinha do que pra lidar com a morte dos meus pais? Cinco anos da minha vida... Que desperdício!
Maurício apontou a arma para Beatriz. E olhou-a de cima a baixo. Aproximou-se abrindo o zíper das calças. Ela corre para trás do sofá e olha-o:
- Como você é patético... nunca me fez gozar em cinco anos que ficamos casados e agora me vem com esse ar de grande amante... Pois fique sabendo que eu dou pra qualquer homem, menos pra você.
Ele a agarrou pelos cabelos, jogou-a no chão. E enquanto carregava a arma, disse:
- Ou você transa comigo ou meto uma bala no meio dessa sua carinha linda.
- Bem... até que pode ser bom... de repente a raiva, o orgulho ferido te aqueceram... Mas deixa que eu te mostro como eu fazia com os homens com os quais te traí.
Tirando a arma da mão dele, Beatriz tira sua roupa e as calças do ex-marido. Exibe-se para ele. Domina-o. Enlouquece-o. Mordidas, arranhões, risadas, suspiros, murmúrios, gemidos... Horas a fio os dois se confundem na sombra que projetam na parede.
Exausto, Maurício se atira à cama ofegante e sonolento. Fecha os olhos. Ela, então, espera a respiração ficar mais profunda, levanta-se, olha-se no espelho... os cabelos estão desgrenhados e a maquiagem dos olhos escorrendo. Vai ao banheiro, lava o rosto e ajeita os cabelos. Veste-se. Vê a pistola em cima da cama. Pega. Olha o revólver e o ex-marido. Ali está a solução dos seus problemas. Em dois anos de separação, ela já havia se mudado três vezes. Ele sempre a encontrava. Ele e aquele maldito sentimento masculino de posse. Beatriz não agüentava mais olhar para aquele homem. Os telefonemas de madrugada, os xingamentos, os empregos que ele a fez perder.
- Acorda! Acorda, seu bosta!
- O que você vai fazer?
- Um favor à humanidade.
- Por favor, Beatriz, pelos anos que nós vivemos juntos...
- Os piores da minha vida. Tenta outra coisa, seu idiota!
- Eu imploro, não atira. Maurício se ajoelha aos pés da ex-esposa.
- Essa imagem é a que mais combina com você. Submisso, suplicante, decadente. Eu sempre tive vergonha de apresentar você pras minhas amigas... Sempre com essa cara de homem correto, chefe de família, bom marido... Sem novidades, sem emoção. Eu dormia fazendo sexo com você.
- Beatriz... por favor...
- Abre a boca!
O disparo foi seco. A parede cinza ficou manchada de vermelho.
- Droga, vou ter que pintar de novo...
Contemplou o corpo caído, inerte, com um olhar de pânico. Empurrou o cadáver com o pé, para ter certeza de que não havia possibilidade de ter sobrevivido. Sentando no sofá, Beatriz colocou as mãos atrás da cabeça e ficou a pensar no que faria. Minutos depois, vai ao quarto, pega um lenço branco numa gaveta e esfrega-o na pistola. Em seguida, coloca a arma na mão direita de Maurício... Pára, pensa e corrige, ele era canhoto. Com o dedo dele aperta o gatilho e dispara a arma. Analisa: cena perfeita para um suicídio... o marido inconformado com a separação, vai à casa da ex-mulher e se mata, para afetá-la. Arma e pólvora na mão, digitais... tudo.
Voltando ao quarto, Beatriz coloca em uma bolsa duas ou três peças de roupa, dinheiro, chaves e um livro. Sai do apartamento, pega um táxi e pede ao motorista que a leve ao aeroporto. Lembra de um ex-namorado que trabalha numa companhia aérea.
- Nunca pensei que aquele imbecil me seria tão útil. Murmura consigo mesma.
Chegando ao aeroporto, dirige-se ao guichê e pergunta à recepcionista se ela poderia falar com Ricardo; ela informa que ele está em uma reunião com a presidência da empresa, mas que já deve estar no fim. Menos de cinco minutos depois, Beatriz está num café conversando com o ex-namorado.
- Quem diria, não? Você... gerente... Casou?
- E tive filhos.
- Jura?
- Você me abandonou, eu queria ter uma família, você sabe.
- Sei, sei sim... Hum... Ricardo, eu tenho um pouco de pressa, queria te pedir um favor.
- E o que eu ganho com isso?
- O que quiser, é só pedir. Respondeu Beatriz com um sorriso malicioso.
- Você não mudou nada... Que ótimo. Diga. Do que se trata?
- Eu preciso de uma passagem pra qualquer lugar, não importa. O importante é que a data de embarque seja alterada. Tem que constar que eu embarquei ontem. Você consegue isso?
- Consigo o que você quiser, meu bem. Mas o que você andou aprontando, hein?
- Nada que lhe interesse. Mas pago bem, você já teve chance de conhecer os meus serviços. Disse, sorrindo e piscando para Ricardo.
Dentro de duas horas, Beatriz estava sentada, num avião a caminho de qualquer lugar. Pediu água à comissária e olhou pela janela, pensativa. Esperaria a notícia da morte do ex-marido, que provavelmente só seria encontrado quando começasse a feder, não que ele não fedesse em vida. A intimação para depor deveria chegar em seguida. E ela já preparava sua melhor expressão de surpresa e horror.
Abriu a bolsa, tirou o livro que trouxera e recomeçou a lê-lo.



PS.: Agradecimentos a Bárbara Lemos pelas sugestões durante a elaboração do texto e pelo título. :-)

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Eu, modo de usar



Pode invadir ou chegar com delicadeza, mas não tão devagar que me faça dormir. Não grite comigo, tenho o péssimo hábito de revidar. Acordo pela manhã com ótimo humor, mas ... permita que eu escove os dentes primeiro. Toque muito em mim, principalmente nos cabelos e minta sobre minha nocauteante beleza.

Tenho vida própria, me faça sentir saudades, conte algumas coisas que me façam rir, mas não conte piadas e nem seja preconceituoso, não perca tempo, cultivando este tipo de herança de seus pais. Viaje antes de me conhecer, sofra antes de mim para reconhecer-me um porto, um albergue da juventude.

Eu saio em conta, você não gastará muito comigo. Acredite nas verdades que digo e também nas mentiras, elas serão raras e sempre por uma boa causa. Respeite meu choro, me deixe sozinha, só volte quando eu chamar e, não me obedeça sempre que eu também gosto de ser contrariada. (Então fique comigo quando eu chorar, combinado?). Seja mais forte que eu e menos altruísta!

Não se vista tão bem... gosto de camisa para fora da calça, gosto de braços, gosto de pernas e muito de pescoço. Reverenciarei tudo em você que estiver a meu gosto: boca, cabelos, os pêlos do peito e um joelho esfolado, você tem que se esfolar às vezes, mesmo na sua idade.

Leia, escolha seus próprios livros, releia-os. Odeie a vida doméstica e os agitos noturnos. Seja um pouco caseiro e um pouco da vida, não de boate que isto é coisa de gente triste. Não seja escravo da televisão, nem xiita contra. Nem escravo meu, nem filho meu, nem meu pai. Escolha um papel para você que ainda não tenha sido preenchido e o invente muitas vezes.

Me enlouqueça uma vez por mês, mas me faça uma louca boa, uma louca que ache graça em tudo que rime com louca: loba, boba, rouca, boca ... Goste de música e de sexo. Goste de um esporte não muito banal. Não invente de querer muitos filhos, me carregar para a missa, apresentar sua familia... isso a gente vê depois ... se calhar ...

Deixa eu dirigir o seu carro, que você adora. Quero ver você nervoso, inquieto, olhe para outras mulheres, tenha amigos e digam muitas bobagens juntos. Não me conte seus segredos ... me faça massagem nas costas. Não fume, beba, chore, eleja algumas contravenções. Me rapte!

Se nada disso funcionar ... experimente me amar.

(Martha Medeiros)

PS.: Para fazer jus ao "Pensamentos (...) de outrem" do subtítulo.

domingo, 21 de outubro de 2007

Autismo

Olhando o blog agora, vi que ele é uma materialização do meu autismo. Quando penso que superei a minha timidez em exibir os meus textos (com histórico até de incineração), eu crio um blog que fica num cantinho escuro, sem aviso de sua existência a quase ninguém.

Aprendi com Martha Medeiros a ter pânico de obras póstumas. Você escreve algo sem a menor pretensão, morre e alguém, que sabe-se Zeus de onde veio, acha que aquilo é digno de ir para uma editora. Para evitar esse tipo de situação, queimei. Hoje não tenho coragem. É fascinante reler um texto escrito tempos atrás. Não me reconheço neles. Não mais. Mas um dia fui eu. E isso é memória. O que faço hoje é reescrevê-los. Ou continuá-los.

Estou relendo Bufo & Spallanzani, de Rubem Fonseca. Violento, sagaz, intrigante. Recomendo. Li-o pela primeira vez aos 16 anos. Hoje, sete anos depois, para mim é outro livro. O mesmo vale para os textos pessoais. Quem sabe em sete anos eu ria do que escrevi aos 23...

Crônica Frustrada




Se para fazer um bom samba é preciso um bocado de tristeza, eu deveria começar hoje minha carreira de sambista, embora já tenha tido, confesso, dias mais “inspiradores”. Cheguei a tantas conclusões hoje, mas nenhuma digna de defesa e sequer pretensão para tal. Aliás, pretensão é algo que tem me irritado profundamente. Significação alterada, eu sei... mas a flor do Lácio precisa fazer jus ao seu título.

Pretensão, vaidade... A vaidade em sua pior forma tem se esfregado na minha cara. Salomão tinha razão (se é que ela existe): tudo no mundo é vaidade. Mas quem condenará isso?

Auto-retrato


Quando crescer, quero ser prosa...
uma prosa poética.
Se for difícil,
serve uma poesia prosaica.

Gosto de barulho de água,
não gosto de pessoas bipolares.
Detesto laranjado e acho que não ficaria bem sem cabelos...
Por isso não sou budista.

Leio revistas de ponta a ponta,
uso até marcador de livro e
nem o corpo editorial passa despercebido.
Não consigo largar um livro no meio.
Falando neles, já comprei pela capa,
já dei de presente e me arrependi.
Queria um perfume com cheiro de livro novo.

Não sou católica.
Sou covarde, segundo Dawkins.
Tenho déjà vus e não sei explicá-los.
Temo o que não entendo.

Não concordo com Drummond às vezes,
mas sempre me delicio lendo-o.
Rubem Fonseca mexe com meus instintos,
por sorte meu inconsciente sabe guardar segredos.

Prefiro dias nublados a ensolarados.
Não gosto de elevadores.
Não uso tênis nem jeans.
Não sei se me namoraria.
Angustio-me com pouca coisa
e choro por menos ainda.

Tenho o pensamento fragmentado...
minha lógica nem sempre é muito lógica.
Não tolero que me subestimem
e tenho medo do contrário.
Tenho medo de muitas coisas,
mas poucas me paralisam.

Tenho um diário não diário,
não gosto de obrigações...
nem de rimas e formas fixas.
Sempre uso agendas até os três primeiros meses do ano,
depois as abandono numa gaveta qualquer.
E não tenho paciência de Jó.
O meu acento é circunflexo.

Tenho dúvidas, muitas dúvidas
E nenhuma certeza.
Mas quem precisa delas?

Uma qualquer



Sentada numa cadeira de uma delegacia qualquer, Eulália passa a língua nos dentes pensativa. Estão quebrados. Ela lembra então do episódio da noite anterior. Um cliente. Fez de tudo e no fim da noite não quis pagar os serviços prestados. Devido a sua reação agressiva e indignada, deu-lhe um soco que lhe quebrou os dentes incisivos e a deixou desacordada. Quando despertou, sabe-se lá quanto tempo depois, estava sozinha naquele quarto que fedia a enxofre e mofo. Sua bolsa estava aberta e todo seu dinheiro havia sido levado. Aborrecida e desgrenhada, ela sai do quarto, conversa com o dono daquele lugar chinfrim, onde costumava ir com seus clientes, e acerta o pagamento do pernoite para mais tarde.
Ainda pensativa, lembra da morte da mãe. Assassinada pelo namorado que acreditava em uma possível, mas não confirmada, traição. Crimes passionais são sempre tão risíveis... Não há de ser à toa que está entre os pecados capitais, que são, diga-se, os melhores de se cometer.
Tais pensamentos levam-na ainda a outro acontecimento. Remete-se ao dia em que seu pai a acordou no meio da noite, não cheirava à bebida, como de costume, no entanto, chegou a sua cama cambaleante. Fingimento? Talvez. Disse que ela estava virando mocinha e que os rapazes em breve começariam a desejá-la. E que ele, como pai, tinha direito de tê-la antes de todos os outros. Aos dez anos, não compreendera muito bem o que ele quisera dizer com “direito de tê-la”. Até que ele começou a passar a mão em suas coxas e tentar beijá-la. Oferecendo alguma resistência e tentando fazer algum barulho para que sua mãe, que dormia profundamente no quarto ao lado ouvisse, escutava ameaças sussurradas pelo pai.
É só do que consegue lembrar. Os demais detalhes foram apagados por sua memória seletiva. Lembra, porém, que depois foi a uma delegacia fazer corpo de delito, mas não antes de ir a um hospital com um forte sangramento. Recorda-se também que seu pai respondeu a um longo processo e passou um dia preso. Acabou solto por um habeas corpus impetrado por sua advogada.
Dispersa em seus pensamentos, Eulália estava totalmente alheia aos insultos e gracejos de dois policiais que tomavam café perto de onde ela se encontrava. Ainda imersa em reminiscências, ela pensava com que dinheiro ia pagar o aluguel miserável do cubículo ainda mais miserável que a abrigava. O maldito cliente da noite anterior não só não pagou o programa como roubou o dinheiro que ela separara para o aluguel. Teria que trabalhar dobrado. “Mulher de vida fácil?”, pensou e fez um muxoxo.
Caindo em si, levantou-se e disse ao delegado que precisava ir embora, mas que a fiança ela pagaria a ele com a única coisa que ela sabia fazer profissionalmente, porque dinheiro, esse ela não tinha. Ele deu um sorriso com o canto dos lábios e disse: “Apareço no seu apartamento mais tarde. Se é que se pode chamar aquele muquifo de apartamento”. Ela deu um sorriso triste e se retirou. Já na rua movimentada e barulhenta acendeu um cigarro e parou num boteco de esquina para tomar uma cerveja.
Eulália não era bonita, nem jovem, não tinha charme algum e elegância definitivamente não era o seu forte. Seu olhar trazia a sombra que traz o olhar das pessoas sofridas e resignadas. Nunca se imaginara em outra profissão, embora já sentisse a perda numerosa de clientes por conta da idade avançada. No entanto, se sentia igualmente velha para uma mudança de vida. Não tinha família nem amigos. Era uma solitária, mas não por opção. A vida que levava exigia isso dela.
Tomando sua cerveja pensou que quando morresse não haveria velório, enterro... provavelmente iria para o IML com um adesivo escrito “indigente” colocado em seu dedão do pé direito. Tal pensamento a angustiava. Quem choraria sua morte? Alguém sentiria sua falta? Talvez o dono do prédio suburbano em que morava, quando fosse cobrar o aluguel e a porta não fosse atendida. Talvez o dono do motel barato ao qual ela levava seus parcos clientes. Ou nem eles.
Ao terminar a cerveja, tira da bolsa seu batom vermelho, passa em seus lábios murchos, cochicha algo ao ouvido do dono do boteco e vai embora sem rumo. Certamente volta para a vida anônima e não sentida que a angustia mais que a morte com as mesmas características.