quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Dos Diálogos Memoráveis*


- Que foi?

- ...

- Eu disse alguma coisa que te chateou?

- Não, não.

- Então... Complete a frase (risos).

- É que os meus olhos ficam gagos diante dos teus.

- ... (corando)

- Os teus olhos são mestres em retórica. Os meus ficam tímidos, gaguejam diante de tanta espontaneidade e firmeza.



(...)



* Baseado num diálogo real.
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Pintura: Sleeping Bather, Pierre-Auguste Renoir, 1904 (há controvérsias sobre o nome da obra, mas não sobre a autoria).
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PS.: Este é o primeiro texto de uma série que tem o objetivo de eternizar bons diálogos que eu vivi, presenciei ou me foram narrados. Considerem, quando se tratar de algo comprometedor, que a personagem é uma amiga minha. ;)

domingo, 28 de outubro de 2007

Das flores e sua efemeridade


Li algum texto em um lugar qualquer que eu definitivamente não vou lembrar qual foi, que dizia: flores não são um bom presente. Fiquei pensando sobre isso. Sempre quis mandar flores para um homem. Mas sei que isso dificilmente será visto com olhos bons. Vai parecer pilhéria. Não sei ao certo quem convencionou que flores e mulheres são almas gêmeas. Não que não o sejam de fato. Mas poderiam ser almas trigêmeas, por que não?
A alegação de quem não gosta de receber flores como presente é sempre a mesma: não ficam para a posteridade, são efêmeras, caras e funcionalmente inúteis. É uma maneira prática de ver as coisas. Materialista, no mínimo. Insensível, para ser gentil.
Não há nada mais simbólico que flores. Mesmo livros, que são também ótimos presentes, às vezes só lembramos de quem ganhamos quando abrimos para ler a dedicatória, quando ela existe. Flores não. Sabemos exatamente de quem as recebemos e em que ocasiões.
É certo, entretanto, que elas só têm um significado quando a pessoa que nos mandou significa muito para nós ou tem potencial para tal. Caso contrário, elas não terão sequer sua água trocada e envelhecerão precocemente. É triste, mas é verdade. As flores, seu valor e o tratamento dispensado a elas estão condicionados ao remetente.
Mas elas também são boas para se autopresentear. É um bom hábito. Experiência própria. Recomendo. Não resista a uma bela rosa. Compre-a. E cuide dela, mesmo sabendo que ela não resistirá muito. E fique ao seu lado até que ela fique cabisbaixa. Embalsame-a, se puder, mas só na memória. O encanto das flores reside justamente em sua beleza efêmera. E na quantidade de belíssimas metáforas que isso pode inspirar.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Recomeço


Beatriz entra em seu apartamento, como todos os dias, às 18:38. Dessa vez encontra móveis quebrados, livros jogados no chão, vasos estilhaçados. Pensa se tratar de um assalto e procura, nervosa, seu celular dentro da bolsa. Liga 19...
- Desliga! Diz um homem do qual ela só consegue ver a silhueta.
- O que você quer?
- Desliga!
- Ok, ok... estou desligando... Ela coloca o aparelho sobre o sofá.
- Senta!
- Essa voz... não acredito!
- Cala a boca, sua vadia!
O homem sai da penumbra e ela confirma suas suspeitas. O olhar de medo dela é recebido com um tapa que ecoa pelo pequeno apartamento. Beatriz põe a mão no rosto e lança um olhar de ódio para o homem a sua frente. Ele, com um sorriso no canto dos lábios e uma pistola na mão esquerda, a olha com ar superior.
- Você achou mesmo que a humilhação que me fez passar não teria volta?
- Maurício, isso já faz dois anos! Você disse que tinha me perdoado...
- Perdoar? Você é mesmo muito cínica.
- Ah, quer saber? Se vai atirar, atira logo e acaba com esse papo de marido traído, que de coitadinho nessa história você não tem nada... Disse Beatriz se levantando e indo à cozinha pegar uma cerveja.
- Então o culpado da sua safadeza sou eu agora?
- Safadeza? Eu só transei com meu chefe e com dois amigos seus, meu querido. Podia ser pior. Ou melhor, depende do ponto de vista.
- Eu sempre odiei essa sua ironia.
- E eu sempre odiei o seu cheiro, a sua voz, a sua barba sempre bem feita. Não sei nem por que me casei com você.
- Eu sei, porque você queria uma pessoa que lhe apoiasse quando seus pais morreram. Foi só pra isso que eu servi.
- Serviu? Nem isso você conseguiu, seu verme! Anos de terapia... Eu era uma menina... Sabe que aquela terapia era muito mais pra agüentar aquele casamento morno que a gente tinha do que pra lidar com a morte dos meus pais? Cinco anos da minha vida... Que desperdício!
Maurício apontou a arma para Beatriz. E olhou-a de cima a baixo. Aproximou-se abrindo o zíper das calças. Ela corre para trás do sofá e olha-o:
- Como você é patético... nunca me fez gozar em cinco anos que ficamos casados e agora me vem com esse ar de grande amante... Pois fique sabendo que eu dou pra qualquer homem, menos pra você.
Ele a agarrou pelos cabelos, jogou-a no chão. E enquanto carregava a arma, disse:
- Ou você transa comigo ou meto uma bala no meio dessa sua carinha linda.
- Bem... até que pode ser bom... de repente a raiva, o orgulho ferido te aqueceram... Mas deixa que eu te mostro como eu fazia com os homens com os quais te traí.
Tirando a arma da mão dele, Beatriz tira sua roupa e as calças do ex-marido. Exibe-se para ele. Domina-o. Enlouquece-o. Mordidas, arranhões, risadas, suspiros, murmúrios, gemidos... Horas a fio os dois se confundem na sombra que projetam na parede.
Exausto, Maurício se atira à cama ofegante e sonolento. Fecha os olhos. Ela, então, espera a respiração ficar mais profunda, levanta-se, olha-se no espelho... os cabelos estão desgrenhados e a maquiagem dos olhos escorrendo. Vai ao banheiro, lava o rosto e ajeita os cabelos. Veste-se. Vê a pistola em cima da cama. Pega. Olha o revólver e o ex-marido. Ali está a solução dos seus problemas. Em dois anos de separação, ela já havia se mudado três vezes. Ele sempre a encontrava. Ele e aquele maldito sentimento masculino de posse. Beatriz não agüentava mais olhar para aquele homem. Os telefonemas de madrugada, os xingamentos, os empregos que ele a fez perder.
- Acorda! Acorda, seu bosta!
- O que você vai fazer?
- Um favor à humanidade.
- Por favor, Beatriz, pelos anos que nós vivemos juntos...
- Os piores da minha vida. Tenta outra coisa, seu idiota!
- Eu imploro, não atira. Maurício se ajoelha aos pés da ex-esposa.
- Essa imagem é a que mais combina com você. Submisso, suplicante, decadente. Eu sempre tive vergonha de apresentar você pras minhas amigas... Sempre com essa cara de homem correto, chefe de família, bom marido... Sem novidades, sem emoção. Eu dormia fazendo sexo com você.
- Beatriz... por favor...
- Abre a boca!
O disparo foi seco. A parede cinza ficou manchada de vermelho.
- Droga, vou ter que pintar de novo...
Contemplou o corpo caído, inerte, com um olhar de pânico. Empurrou o cadáver com o pé, para ter certeza de que não havia possibilidade de ter sobrevivido. Sentando no sofá, Beatriz colocou as mãos atrás da cabeça e ficou a pensar no que faria. Minutos depois, vai ao quarto, pega um lenço branco numa gaveta e esfrega-o na pistola. Em seguida, coloca a arma na mão direita de Maurício... Pára, pensa e corrige, ele era canhoto. Com o dedo dele aperta o gatilho e dispara a arma. Analisa: cena perfeita para um suicídio... o marido inconformado com a separação, vai à casa da ex-mulher e se mata, para afetá-la. Arma e pólvora na mão, digitais... tudo.
Voltando ao quarto, Beatriz coloca em uma bolsa duas ou três peças de roupa, dinheiro, chaves e um livro. Sai do apartamento, pega um táxi e pede ao motorista que a leve ao aeroporto. Lembra de um ex-namorado que trabalha numa companhia aérea.
- Nunca pensei que aquele imbecil me seria tão útil. Murmura consigo mesma.
Chegando ao aeroporto, dirige-se ao guichê e pergunta à recepcionista se ela poderia falar com Ricardo; ela informa que ele está em uma reunião com a presidência da empresa, mas que já deve estar no fim. Menos de cinco minutos depois, Beatriz está num café conversando com o ex-namorado.
- Quem diria, não? Você... gerente... Casou?
- E tive filhos.
- Jura?
- Você me abandonou, eu queria ter uma família, você sabe.
- Sei, sei sim... Hum... Ricardo, eu tenho um pouco de pressa, queria te pedir um favor.
- E o que eu ganho com isso?
- O que quiser, é só pedir. Respondeu Beatriz com um sorriso malicioso.
- Você não mudou nada... Que ótimo. Diga. Do que se trata?
- Eu preciso de uma passagem pra qualquer lugar, não importa. O importante é que a data de embarque seja alterada. Tem que constar que eu embarquei ontem. Você consegue isso?
- Consigo o que você quiser, meu bem. Mas o que você andou aprontando, hein?
- Nada que lhe interesse. Mas pago bem, você já teve chance de conhecer os meus serviços. Disse, sorrindo e piscando para Ricardo.
Dentro de duas horas, Beatriz estava sentada, num avião a caminho de qualquer lugar. Pediu água à comissária e olhou pela janela, pensativa. Esperaria a notícia da morte do ex-marido, que provavelmente só seria encontrado quando começasse a feder, não que ele não fedesse em vida. A intimação para depor deveria chegar em seguida. E ela já preparava sua melhor expressão de surpresa e horror.
Abriu a bolsa, tirou o livro que trouxera e recomeçou a lê-lo.



PS.: Agradecimentos a Bárbara Lemos pelas sugestões durante a elaboração do texto e pelo título. :-)

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Eu, modo de usar



Pode invadir ou chegar com delicadeza, mas não tão devagar que me faça dormir. Não grite comigo, tenho o péssimo hábito de revidar. Acordo pela manhã com ótimo humor, mas ... permita que eu escove os dentes primeiro. Toque muito em mim, principalmente nos cabelos e minta sobre minha nocauteante beleza.

Tenho vida própria, me faça sentir saudades, conte algumas coisas que me façam rir, mas não conte piadas e nem seja preconceituoso, não perca tempo, cultivando este tipo de herança de seus pais. Viaje antes de me conhecer, sofra antes de mim para reconhecer-me um porto, um albergue da juventude.

Eu saio em conta, você não gastará muito comigo. Acredite nas verdades que digo e também nas mentiras, elas serão raras e sempre por uma boa causa. Respeite meu choro, me deixe sozinha, só volte quando eu chamar e, não me obedeça sempre que eu também gosto de ser contrariada. (Então fique comigo quando eu chorar, combinado?). Seja mais forte que eu e menos altruísta!

Não se vista tão bem... gosto de camisa para fora da calça, gosto de braços, gosto de pernas e muito de pescoço. Reverenciarei tudo em você que estiver a meu gosto: boca, cabelos, os pêlos do peito e um joelho esfolado, você tem que se esfolar às vezes, mesmo na sua idade.

Leia, escolha seus próprios livros, releia-os. Odeie a vida doméstica e os agitos noturnos. Seja um pouco caseiro e um pouco da vida, não de boate que isto é coisa de gente triste. Não seja escravo da televisão, nem xiita contra. Nem escravo meu, nem filho meu, nem meu pai. Escolha um papel para você que ainda não tenha sido preenchido e o invente muitas vezes.

Me enlouqueça uma vez por mês, mas me faça uma louca boa, uma louca que ache graça em tudo que rime com louca: loba, boba, rouca, boca ... Goste de música e de sexo. Goste de um esporte não muito banal. Não invente de querer muitos filhos, me carregar para a missa, apresentar sua familia... isso a gente vê depois ... se calhar ...

Deixa eu dirigir o seu carro, que você adora. Quero ver você nervoso, inquieto, olhe para outras mulheres, tenha amigos e digam muitas bobagens juntos. Não me conte seus segredos ... me faça massagem nas costas. Não fume, beba, chore, eleja algumas contravenções. Me rapte!

Se nada disso funcionar ... experimente me amar.

(Martha Medeiros)

PS.: Para fazer jus ao "Pensamentos (...) de outrem" do subtítulo.

domingo, 21 de outubro de 2007

Autismo

Olhando o blog agora, vi que ele é uma materialização do meu autismo. Quando penso que superei a minha timidez em exibir os meus textos (com histórico até de incineração), eu crio um blog que fica num cantinho escuro, sem aviso de sua existência a quase ninguém.

Aprendi com Martha Medeiros a ter pânico de obras póstumas. Você escreve algo sem a menor pretensão, morre e alguém, que sabe-se Zeus de onde veio, acha que aquilo é digno de ir para uma editora. Para evitar esse tipo de situação, queimei. Hoje não tenho coragem. É fascinante reler um texto escrito tempos atrás. Não me reconheço neles. Não mais. Mas um dia fui eu. E isso é memória. O que faço hoje é reescrevê-los. Ou continuá-los.

Estou relendo Bufo & Spallanzani, de Rubem Fonseca. Violento, sagaz, intrigante. Recomendo. Li-o pela primeira vez aos 16 anos. Hoje, sete anos depois, para mim é outro livro. O mesmo vale para os textos pessoais. Quem sabe em sete anos eu ria do que escrevi aos 23...

Crônica Frustrada




Se para fazer um bom samba é preciso um bocado de tristeza, eu deveria começar hoje minha carreira de sambista, embora já tenha tido, confesso, dias mais “inspiradores”. Cheguei a tantas conclusões hoje, mas nenhuma digna de defesa e sequer pretensão para tal. Aliás, pretensão é algo que tem me irritado profundamente. Significação alterada, eu sei... mas a flor do Lácio precisa fazer jus ao seu título.

Pretensão, vaidade... A vaidade em sua pior forma tem se esfregado na minha cara. Salomão tinha razão (se é que ela existe): tudo no mundo é vaidade. Mas quem condenará isso?

Auto-retrato


Quando crescer, quero ser prosa...
uma prosa poética.
Se for difícil,
serve uma poesia prosaica.

Gosto de barulho de água,
não gosto de pessoas bipolares.
Detesto laranjado e acho que não ficaria bem sem cabelos...
Por isso não sou budista.

Leio revistas de ponta a ponta,
uso até marcador de livro e
nem o corpo editorial passa despercebido.
Não consigo largar um livro no meio.
Falando neles, já comprei pela capa,
já dei de presente e me arrependi.
Queria um perfume com cheiro de livro novo.

Não sou católica.
Sou covarde, segundo Dawkins.
Tenho déjà vus e não sei explicá-los.
Temo o que não entendo.

Não concordo com Drummond às vezes,
mas sempre me delicio lendo-o.
Rubem Fonseca mexe com meus instintos,
por sorte meu inconsciente sabe guardar segredos.

Prefiro dias nublados a ensolarados.
Não gosto de elevadores.
Não uso tênis nem jeans.
Não sei se me namoraria.
Angustio-me com pouca coisa
e choro por menos ainda.

Tenho o pensamento fragmentado...
minha lógica nem sempre é muito lógica.
Não tolero que me subestimem
e tenho medo do contrário.
Tenho medo de muitas coisas,
mas poucas me paralisam.

Tenho um diário não diário,
não gosto de obrigações...
nem de rimas e formas fixas.
Sempre uso agendas até os três primeiros meses do ano,
depois as abandono numa gaveta qualquer.
E não tenho paciência de Jó.
O meu acento é circunflexo.

Tenho dúvidas, muitas dúvidas
E nenhuma certeza.
Mas quem precisa delas?

Uma qualquer



Sentada numa cadeira de uma delegacia qualquer, Eulália passa a língua nos dentes pensativa. Estão quebrados. Ela lembra então do episódio da noite anterior. Um cliente. Fez de tudo e no fim da noite não quis pagar os serviços prestados. Devido a sua reação agressiva e indignada, deu-lhe um soco que lhe quebrou os dentes incisivos e a deixou desacordada. Quando despertou, sabe-se lá quanto tempo depois, estava sozinha naquele quarto que fedia a enxofre e mofo. Sua bolsa estava aberta e todo seu dinheiro havia sido levado. Aborrecida e desgrenhada, ela sai do quarto, conversa com o dono daquele lugar chinfrim, onde costumava ir com seus clientes, e acerta o pagamento do pernoite para mais tarde.
Ainda pensativa, lembra da morte da mãe. Assassinada pelo namorado que acreditava em uma possível, mas não confirmada, traição. Crimes passionais são sempre tão risíveis... Não há de ser à toa que está entre os pecados capitais, que são, diga-se, os melhores de se cometer.
Tais pensamentos levam-na ainda a outro acontecimento. Remete-se ao dia em que seu pai a acordou no meio da noite, não cheirava à bebida, como de costume, no entanto, chegou a sua cama cambaleante. Fingimento? Talvez. Disse que ela estava virando mocinha e que os rapazes em breve começariam a desejá-la. E que ele, como pai, tinha direito de tê-la antes de todos os outros. Aos dez anos, não compreendera muito bem o que ele quisera dizer com “direito de tê-la”. Até que ele começou a passar a mão em suas coxas e tentar beijá-la. Oferecendo alguma resistência e tentando fazer algum barulho para que sua mãe, que dormia profundamente no quarto ao lado ouvisse, escutava ameaças sussurradas pelo pai.
É só do que consegue lembrar. Os demais detalhes foram apagados por sua memória seletiva. Lembra, porém, que depois foi a uma delegacia fazer corpo de delito, mas não antes de ir a um hospital com um forte sangramento. Recorda-se também que seu pai respondeu a um longo processo e passou um dia preso. Acabou solto por um habeas corpus impetrado por sua advogada.
Dispersa em seus pensamentos, Eulália estava totalmente alheia aos insultos e gracejos de dois policiais que tomavam café perto de onde ela se encontrava. Ainda imersa em reminiscências, ela pensava com que dinheiro ia pagar o aluguel miserável do cubículo ainda mais miserável que a abrigava. O maldito cliente da noite anterior não só não pagou o programa como roubou o dinheiro que ela separara para o aluguel. Teria que trabalhar dobrado. “Mulher de vida fácil?”, pensou e fez um muxoxo.
Caindo em si, levantou-se e disse ao delegado que precisava ir embora, mas que a fiança ela pagaria a ele com a única coisa que ela sabia fazer profissionalmente, porque dinheiro, esse ela não tinha. Ele deu um sorriso com o canto dos lábios e disse: “Apareço no seu apartamento mais tarde. Se é que se pode chamar aquele muquifo de apartamento”. Ela deu um sorriso triste e se retirou. Já na rua movimentada e barulhenta acendeu um cigarro e parou num boteco de esquina para tomar uma cerveja.
Eulália não era bonita, nem jovem, não tinha charme algum e elegância definitivamente não era o seu forte. Seu olhar trazia a sombra que traz o olhar das pessoas sofridas e resignadas. Nunca se imaginara em outra profissão, embora já sentisse a perda numerosa de clientes por conta da idade avançada. No entanto, se sentia igualmente velha para uma mudança de vida. Não tinha família nem amigos. Era uma solitária, mas não por opção. A vida que levava exigia isso dela.
Tomando sua cerveja pensou que quando morresse não haveria velório, enterro... provavelmente iria para o IML com um adesivo escrito “indigente” colocado em seu dedão do pé direito. Tal pensamento a angustiava. Quem choraria sua morte? Alguém sentiria sua falta? Talvez o dono do prédio suburbano em que morava, quando fosse cobrar o aluguel e a porta não fosse atendida. Talvez o dono do motel barato ao qual ela levava seus parcos clientes. Ou nem eles.
Ao terminar a cerveja, tira da bolsa seu batom vermelho, passa em seus lábios murchos, cochicha algo ao ouvido do dono do boteco e vai embora sem rumo. Certamente volta para a vida anônima e não sentida que a angustia mais que a morte com as mesmas características.