segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Abismo


PARTE III ou Final

O ano passara rápida e ansiosamente. Os contatos com Mauro ao longo do tempo tornaram-se mais frequentes e intensos. As promessas eram inevitáveis. Já no aeroporto, ela não conseguia tirar do seu rosto um semi-sorriso.

Ao desembarcar, abraçou seus pais e os amigos calorosamente, entretanto, seu olhar não conseguia parar de insistir em procurá-lo. Inutilmente. Uma ligação fria a informou a impossibilidade de ele ir buscá-la. Motivo: uma dor de cabeça. O telefonema terminou com a seguinte frase:

- Não se preocupe, a gente dá um jeito de se ver ainda essa semana.

Chorou ao deitar para dormir. Chorou o que não chorara ao longo dos últimos dez anos. Covarde! Pensou. E toda a expectativa? O que deveria fazer com ela?

Não se perdoava por ainda esperar algo dele. Todas as vezes era exatamente assim que ele havia agido. O que haveria de especial nessa vez para ser diferente?

Telefonou, marcou um encontro. Foi armada de desaforos até a alma. Quando o viu, seus olhos brilharam. Um sorriso de Mauro foi suficiente para desintegrar a armadura de Luiza.
Abraçando-a forte, disse:

- Estou indo embora para outro Estado. Recebi uma proposta de emprego irrecusável.
- ...
- Tente entender.
- Quando você vai?
- Hoje à noite.

Luiza se desvencilhou do abraço, disse adeus, desejou boa sorte na nova vida e foi embora engasgada com os desaforos que engolira ao vê-lo e que regurgitou quando ele dera a notícia. Preferiu retirar-se elegantemente e isso só a consumiu mais.

À noite, antes de embarcar, Mauro telefonou:

- Você sabe que por mim eu estaria com você. Onde quer que fosse.
- Não, eu não sei... Desde quando você sabia que ia embora?
- Há cerca de três meses.
- ...
- Eu te amo. Não esquece disso.
- Adeus, Mauro. Boa viagem.

Depois daquele telefonema, Luiza conformara-se com o fato de que aquela seria sempre uma história mal resolvida. E aquilo a maltratava. Sempre se vangloriara por ter posto um ponto final em todas as suas relações e não restar nenhum ranço. A hegemonia das relações bem resolvidas acabara naquela noite com a rosa que Mauro deixara sobre o tapete da porta de entrada da casa de Luiza acompanhada do bilhete:

"Voltarei por você. Adeus".

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Resolvi continuar e/ou finalizar o que havia deixado em aberto. As outras partes da série estão aqui:
Parte I
Parte II

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A distância ou De perto ninguém é normal

Gala Nude From Behind Looking in an Invisible Mirror, Salvador Dalí. 1960

Aquela mulher era, para ele, um ícone da perfeição. Cada curva, cada nuance parecia feita por mãos de artista. Ela sequer cruzara um olhar distraído com o dele. Idealizava-a como um ser superior a todos os outros. Seu modo de andar era tão gracioso que ele achava uma infâmia sinais se fecharem para ela. Tudo deveria parar para que ela simplesmente pudesse mostrar ao mundo a graça. Quisera várias vezes se aproximar e iniciar uma conversa, ainda que superficial. Hesitava sempre. Sua teoria de que é melhor não chegar perto demais de quem se admira fora infalível até então. A admiração, pensava, deve permanecer no âmbito da idealização. Só assim o ser admirado se mantém sem máculas.

Certo dia, uma grande oportunidade tornou impossível resistir a uma investida. Encontrou-a em uma biblioteca folheando A Divina Comédia.

- Já leu?
- Não, não.
- Maravilhoso.
- Imagino.
- Por que não leva?
- Eu não gosto muito de ler.
- Não? E o que faz numa biblioteca?
- Estou esperando meu namorado. Ele trabalha aqui.
- Ahhh...

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Chuvas de Verão

Parte III ou Final

Durante todos os outros dias, eles ficaram juntos. Ela pediu discrição, já que ele era noivo e tal informação era de conhecimento geral. Entretanto, ele, como a maioria dos homens, não sabia ser discreto. Os olhares e sorrisos eram perceptíveis até ao mais desatento dos observadores. O cuidado e atenção que dispensava a ela eram exagerados.

Ela já não se importava. Quando percebeu, estavam andando de mãos dadas em plena praça, rindo de piadinhas que só os apaixonados conseguem rir.

Após uma semana de romance, a despedida. Ela voltou a sua cidade contendo as lágrimas, ele permaneceu no cais sem conter as dele. O último beijo foi entrecortado por promessas.

- Eu vou te encontrar.
- Então vá.

Pôs na mão dele um bilhete com um número de telefone e virou as costas. Preferiu não olhar mais.

(...)

Telefonemas espaçados ainda os ligava.

- Vou à tua cidade na semana que vem.
- Sério?
- Juro.
- Vens a trabalho?
- Não. Vou pra te ver.
- ...
- Ligo quando chegar.
- Combinado.

Beatrice foi ao supermercado, comprou o melhor vinho que conhecia, frios e alugou filmes. Uma amiga, acompanhando a excitação, emprestou seu apartamento para o encontro. Estava tudo preparado.

Um dia se passou. Ele não ligara. Outro dia. Nada. Mais um dia. Aquele em que iria embora, segundo o que dissera na semana anterior.

Às 22h37, o telefone toca.

- Estou indo embora.
- Boa viagem.
- Me perdoa. Não pude te encontrar. Ela veio me encontrar aqui.
- Ok. Espero que se casem logo. Noivados longos são desgastantes.
- Não fala assim. Você sabe que eu queria estar com você.
- Eu achei que soubesse.
- ...
- Boa viagem. Não precisa me ligar mais.

Já dizia alguém que a expectativa é a ante-sala da frustração. Beatrice, que sempre detestara frases feitas, tornou esta seu lema.

Depois deste episódio, foram várias vindas, telefonemas e apelos, mas ela não encontrava disposição alguma para tentar novamente. As desculpas e pretextos para dizer não eram sempre um desafio de criatividade. E isso era bem mais divertido do que a espera vã. Descobrira que poderia ser bem sádica quando estimulada, como as boas mulheres o são.

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Eu havia abandonado esta série sem final, mas achei isso tão reticente, que resolvi finalizá-la. As outras partes encontram-se no marcador Chuvas de Verão, no lado direito da página, a quem interessar.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Νάρκισσος*

Sofria da síndrome de pavão. Queria todos os homens à sua disposição, mesmo aqueles que ela não queria nem quereria jamais. As mulheres poderiam se limitar a admirá-la e invejá-la. Sabia que era bonita. Achava-se linda até mesmo chorando, quando somente abençoados permaneciam bonitos. Ficava horas prostrada em frente ao espelho do banheiro chorando dissimuladamente. Só para ver o seu melhor ângulo. Aquela luz a valorizava muito. Moraria naquele banheiro. Nas outras mulheres sempre achara um defeito ou outro, mas nela não. E já procurara minuciosamente. E ainda dizem que a perfeição é um mito.

Morreria por um elogio bem feito e pela sua parte preferida: a falsa modéstia. Conseguia até se fazer corar. Ela vivia disso. Não saberia ser de outro modo. Adorava uma mesa de bar cheia, o seu telefone que não parava de tocar. As gargalhadas mudas e repetidas, as conversas sem profundidade. A profundidade é para os românticos, era sua frase de efeito. Adorava frases de efeito. Estava sempre acompanhada. Apesar disso, quando a cortina se fechava, se mostrava mais solitária que um paulistano** .


* Narciso ou Auto-admirador, em grego.
** Música incidental: Telegrama (Zeca Baleiro).