segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Camafeu

Pessoas sérias demais. Palestras intermináveis. Sempre detestara eventos acadêmicos. Aos 20 anos sentia-se uma velha fumando um charuto e assistindo tediosamente à euforia pré-adolescente das pessoas de sua idade. Chegara cedo. Sentou-se num banco de praça e abriu um livro. O ciclo de palestras só a entediou ainda mais. Uma manhã inteira com curtos intervalos. Um moço se sentou ao seu lado e comentou algo sobre a fala do palestrante. Não ouvira nem o orador e nem o moço, mas concordou com ambos, a fim de evitar polêmicas. Ao longo de todo o dia, o tal rapaz fez milhares de tentativas de aproximação. Até que Letícia resolveu olhar para ele. Um sorriso encantador iluminou uma expressão ansiosa. Ela sorriu de volta. Pedro. Era assim que se chamava, disse estendendo a mão.
- Almoçamos juntos?
- Por que não?
Passaram a tarde inteira conversando. As palestras ocorriam paralela e lentamente. Ele a fitava com tanta intensidade que era como se ela não pudesse lhe esconder nada.

- 23 anos?
- Não...
- 24?
- Menos.
- Menos?
- 20!
- Jura? Eu jamais lhe daria essa idade.
- 35?
- Um pouco mais.
- 37.
- Bingo.
- ...
- Seus pés estão inchados... posso fazer-lhe uma massagem se quiser, mais tarde, no hotel.
- Aceito.
- Você dividirá o quarto com quem?
- Com umas moças que não conheço bem, mas parece que sairão para uma festa essa noite.
- Ótimo.
- Hum... (levantando uma sobrancelha)
- Não me entenda mal... apenas poderemos ficar mais confortáveis, conversar...
- Ok. Combinado.

Ao longo do jantar a troca de olhares ficou evidente a qualquer observador minimamente atento.

- Sabe que você me chamou atenção desde que chegou? Esse evento todos os anos traz as mesmas pessoas. Quando vi você, fiquei lhe observando longamente.
- Sei... e onde eu estava?
- Sentada num banco de praça, com um vestido longo, um rabo de cavalo e um livro. Quer que eu diga que livro era?
- Quero.
- A Cidade Sitiada, da Lispector.
- ...
- Eu a vi de lado, concentrada, lendo atentamente, e pensei: deus, essa mulher é um camafeu!
(Risos)
Beijaram-se.

Não, essa história não terminou em noite de núpcias, nem em lua-de-mel no Caribe. Mas quem precisa de um final feliz quando se tem uma bela surpresa num dia quente e pouco promissor?

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Marcha Nupcial



- Se você me disser que fica comigo, eu não caso amanhã.
- Você está louca?
- Sim ou não?
- Isso não pode ser sério.
- Você sempre me decepciona...
- O que você quer que eu diga?
- Que me ama e que não suporta a idéia de que amanhã me entregarei a outro homem.
- Não posso.
- Fraco!
- Eu amo você.
- E?
- E te desejo felicidades.
- Não esperava mais que isso de você.
- Então por que ligou?
- Por que eu teimo em apostar até o final. Sempre.
- Eu não posso fazer isso com o Ferreira. Ele é meu melhor amigo.
- Não pode fazer isso com ele, mas pode fazer isso comigo?
- Você está casando com ele porque quer.
- Estou casando com ele porque você é um frouxo!
- E você é o quê? Muito corajosa? Com esse medo estrondoso de ficar sozinha?
- Sabe aquela lingerie que você me deu de presente? Vou usar na noite de núpcias.
- ...
- Adeus, Mauro. E não me apareça na cerimônia amanhã.

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Como boa pagadora que sou, vim trazer o nome do autor da tela do post sem título do dia 24 de setembro: Alvar Rubin. :)

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Ansiedade



Parte I

Na sala de espera do laboratório, Clarice sentia suas mãos tremerem. Havia feito o trajeto até ali no piloto automático. Os dez minutos que esperou pareceram duas horas. Entrou. Um tubinho de nada definiria sua vida. Aquela mulher da recepção disse 24 horas!? As cenas passavam em flashs. O que uma noite de bebedeira faz a uma pessoa... Não se reconhecera.

- O que eu estou fazendo aqui?
- Nós dois...
- Hum... agora me lembro. Minha cabeça tá estourando.
- Você estava bem transtornada.
- Devia estar mesmo, é a primeira vez que amanheço com um desconhecido.
- Sempre há uma primeira vez.
- Preferia que não houvesse.
- ...
- Desculpe.
- Ainda não tenho seu telefone.
- Não me leve a mal, mas nós podemos pular essa parte. Bom dia.
Recolheu suas roupas e entrou no banheiro. Era a primeira vez que se sentia do lado canalha da história.

(Planta / Projeto: Katy Karen
Execução: Moi)