quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Para uma noite chuvosa

Study of Nude, de Salvador Dalí (1925)

Já não se reconhecia. Havia desembrutecido. E isso a incomodava. Profundamente. Nem tão água mole, nem tão pedra dura. Preferia assim. No entanto, desfazia-se entre os dedos dele quando a tocava e a atravessava com aqueles olhos cor castanho-pedido-de-casamento. Sabia-se incapaz de resistir. E isso a aterrorizava. Sempre detestara a vulnerabilidade e de repente se sentia à mercê de qualquer romantismo piegas e clichê. Tão óbvio e previsível. Alguém já disse que não há carta de amor original. Os apaixonados são também mímese de amores dos quais foram voyeurs. E o ciclo não se fecha nunca.

*****

Hoje faz 46 anos da morte de Mário Faustino, o poeta dos presságios e das belas metáforas. Aqui fica um poema para os amantes da boa poesia.

O MÊS PRESENTE
(Mário Faustino)

Sinto que o mês presente me assassina,
As aves atuais nascem mudas
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre homens nus ao sul de luas curvas.
Sinto que o mês presente me assassina,
Corro despido atrás de cristo preso, |
Cavalheiro gentil que me abomina
E atrai-me ao despudor da luz esquerda
Ao beco de agonia onde me espreita
A morte espacial que me ilumina.
Sinto que o mês presente me assassina
E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas
De apóstolos marujos que me arrastam
Ao longo da corrente onde blasfemas
Gaivotas provam peixes de milagre.
Sinto que o mês presente me assassina,
Há luto nas rosáceas desta aurora,
Há sinos de ironia em cada hora
(Na libra escorpiões pesam-me a sina)
Há panos de imprimir a dura face
A força do suor de sangue e chaga.
Sinto que o mês presente me assassina,
Os derradeiros astros nascem tortos
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre o morto que enterra os próprios mortos.
O tempo na verdade tem domínio.
Amen, amen vos digo, tem domínio.
E ri do que desfere verbos, dardos
De falso eterno que retornam para
Assassinar-nos num mês assassino.

7 comentários:

...EU VOU GRITAR PRA TODO MUNDO OUVIR... disse...

Alõ escritora Jô!Estava sentindo sua falta!

Quando se encontra esta pessoa com esses olhos que descreveu qualquer um fica impotente e frágil...

Quanto a Mario Faustino quem sou eu para comentar.Só posso aplaudir!

Beijos,Sonia Regina.

Alan Carlos disse...

absolutamente fantástico.

Camila disse...

E é assim. Somos fortes, e somos mesmo. Mas a paixão ou o amor sempre consegue nos derrubar ou, pleo menos, baixar a nossa guarda. E sou assim. Eu sou mulher.

Lindo fragmento, Jô.
Lindo!

Cais da Língua disse...

Bela junção de poemas!
lindo

...EU VOU GRITAR PRA TODO MUNDO OUVIR... disse...

Jô!tem um selinho no meu blog para você!

Beijo,Sonia Regina.

Ni ... disse...

Sinto tanta saudade de ti...

Bel Gasparotto disse...

Mímese de amores dos quais foram voyeurs... e geralmente os que estão de fora dizem que dessa água não beberão mais. Quando dão por si, estão se afogando de novo, rss

Tempo que não passo aqui, sem tempo nem pro meu blog. Mas as férias estão aí!

Bj!