sábado, 29 de março de 2008

Dos casos mal resolvidos



Parte I

Ela: 19 anos. Ele: 37. Conheciam-se desde sempre. Eram vizinhos. Simpatizavam um com o outro. E parecia ser só isso até ele falar mais que o clássico: "olá, moça. Tudo bem?". E dizer, sem nenhuma introdução ou eufemismo:
- Nunca mais vi aquele teu namorado ir à tua casa. Você está sozinha? O que acha de sairmos?
Por aquilo ela definitivamente não esperava. Embora soubesse que sempre que o sabia por perto, colocava o seu melhor vestido. O mais esvoaçante. Para combinar com os cabelos soltos.
Enrubesceu.

- Isadora?
- Desculpa... é que me pegaste de surpresa.
- Essa era a idéia. O que me dizes? Podes me responder depois, se preferir.
- Depois quando?
- Me dá teu telefone e eu te ligo mais tarde pra saber a tua resposta.
- Ah, então eu tenho prazo...
- É, eu não sei esperar.
- Quer dizer que se eu te der um não será o único?
- Você fará isso?
- Preciso pensar. E ir agora.
- Pense.
Aproximou-se olhando-a nos olhos profundamente. E dirigiu-se aos seus lábios, ela ainda sentiu o hálito dele e fechou os olhos. Beijou-lhe a face. Não pôde disfarçar o ar frustrado e se foi.

Naquele mesmo dia Isadora tocava a campainha do apartamento dele, ansiosa e nervosa. Lucas abriu a porta com um sorriso que a fez tremer. Pegou-a pela mão e a fez entrar. Encostou-a contra a porta e a beijou sofregamente.
- Eu não aguentava mais te esperar. ..
- Vejo que você fez uma superprodução... frios, vinhos, flores...
- Você não merecia menos que isso. Além do fim do tempo que esperei por você precisar ser comemorado em grande estilo.
Serviu-a de vinho. Riram, gargalharam, falaram de tudo e de nada. A noite apenas começara...

quarta-feira, 26 de março de 2008

Espectadora de ilusões

Adorava os momentos de ócio, quando conseguia ficar com os pensamentos totalmente desertos, com o corpo inerte e os ouvidos moucos. Só os olhos não paravam sua atividade. Admirava hipnoticamente detalhes que passavam despercebidos nos momentos de pressa. Tudo parecia dançar coreografadamente. A fumaça dos incensos, a sombra da vela projetada na parede, a cortina... E ela, uma espectadora. Sempre fora um tanto voyeur. Cansara de ir a parques, sentar em um banco à sombra e observar tudo. O olhar de cada casal desgastado que esperava o filho ir correr com o cachorro da família para trocar farpas e olhares reprovadores. As mãos dadas de um casal adolescente que acredita ser aquele o último amor para todo o sempre. As ilusões eram o que ela mais gostava de observar. Uma criança conversando com um gato, por exemplo, a deixava arrepiada. Um casal de namorados escrevendo seu nome numa árvore para a posteridade era uma de suas cenas favoritas. Ilusões. As ilusões são belas. Belas e cruéis.

Já estivera daquele lado. Sabia a verdade: a vida é feita de fases. E uma delas é a da ilusão. Vivia agora a do desencanto. Do ceticismo. Só não sabia o que era mais sofrido: um sofrimento atroz, pago à vista, ou aquele parcelado de forma vitalícia. Chegou à conclusão de que já fora mais feliz e foi escrever seu nome em uma árvore para os casais apaixonados que fossem fazer o mesmo notassem o quanto eram felizes por terem um ao outro.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Errante

- Estive pensando no quanto eu sou pretensiosa em achar que mereço um homem como você.
- Que bobagem. Se estou aqui é porque acho que você me merece.
- Isso porque você desconhece a minha história. Os detalhes dela.
- Eu sei do seu passado e isso incomoda muito mais a você do que a mim.
- Eu sou uma errante...
- Você foi. Foi uma errante, não é mais.
- Passei por braços que nem lembro. Sou incapaz de saber precisamente com quantos homens fui pra cama. Isso não te maltrata?
- Não. Só me faz sentir mais especial.
- Explique.
- Ora, você teve tantos homens e parou em mim. Como não me lisonjear?
- E quem disse que eu parei?
- A sua alma confidenciou à minha num dos meus sonhos.

segunda-feira, 17 de março de 2008

Constatação


- Quanto mais eu conheço os homens, mais gosto de ser mulher - e hetero. Posso comê-los com ou sem acompanhamentos, mas sem talheres, com certeza.

domingo, 16 de março de 2008

Desafio


- Decifra-me ou me entrego às traças.
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Tela: Sem título, de Salvador Dalí, 1954.
(Obrigada, Bel. :) )

sábado, 15 de março de 2008

A(s) face(s)


Aquela não era ela. Nunca fora, nunca seria. Passava por boa esposa, mas não suportava a voz daquele homem asqueroso. Sabia que ele a procuraria à noite e tomou uma decisão. Deixou a máscara de boa dona de casa, mãe exemplar e fugiu com o dono da venda ao lado. Foi então que notou que já não tinha face, a máscara ficara por tanto tempo colocada sobre seu rosto que já se tornara dela.
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No meio do caminho pediu desculpas ao amante e voltou para casa se esforçando para chegar antes do marido notar sua ausência e com os sapatos na mão para não acordar os filhos.
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Queridos, peço perdão pela ausência, ando com problemas com a internet (foi um milagre eu conseguir postar, vinha tentando há dias), com muito trabalho e muito estudo. Tenho lido alguns dos blogs que sempre li, mas nunca dá tempo de comentar. :( Aparecerei sempre que possível.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Semana da Mulher


Tela: Nude. Pierre-Auguste Renoir. 1876.

"O que é ser mulher? Às vezes me perguntam isso em entrevistas e fico inclinada a responder que é nascer com cromossomos XX, mas não é esta a resposta que o entrevistador espera, é preciso entrar no espírito do debate, e responder que ser mulher é... ah, não consigo.

Bem que tento entrar no clima do Dia Internacional da Mulher, mas esta data me emociona tanto quanto o Dia da Árvore. Um dia especial para refletir sobre nossa condição? Ora, não faço outra coisa o ano inteiro!

Gosto muito de ser mulher mas não acho que sejamos mais especiais do que os homens. Ou mais maltratadas do que eles. Há gente feliz e infeliz dos dois lados do ringue. E se temos que lutar por melhores salários, mais segurança, uma vida mais digna, isso tem que valer para todos – que seja o dia internacional do ser humano, e não o dia internacional da choradeira.

É claro que ainda há discriminação. Foram séculos de hegemonia masculina e isso não se muda do dia pra noite – e olha que em 50 anos mudou coisa demais. Voto, pílula, faculdade, independência financeira, liberdade sexual. Há mais ainda para ser conquistado, e será. Mas quem vai ajudar as mulheres são elas próprias, principalmente porque somos mães: mães dos futuros políticos, mães dos futuros genros de nossas filhas, mães dos futuros patrões delas, e mães delas mesmas, as futuras mulheres que queremos ver mais realizadas e respeitadas. A responsabilidade é toda nossa. Se acertamos ou erramos, se ganhamos mais ou ganhamos menos do que os homens, se somos tratadas com carinho ou com violência, tudo é decorrência das nossas escolhas e atitudes – e das nossas omissões.

Num mundo com tamanha desigualdade social, claro que nem todas as mulheres têm esclarecimento e poder para assumir sozinhas seu destino. Então briguemos por elas, como fizemos quando a argeliana Amina foi ameaçada de ser apedrejada por ser mãe solteira. O governo africano recebeu uma avalanche de cartas pedindo sua 'absolvição', e deu certo. Aquilo foi quando? Julho, setembro, novembro? Foi feito o que tinha que ser feito na hora em que se fez necessário. É assim que funciona. Fazemos nossa parte todos os dias de março, abril, agosto, dezembro, atendendo as demandas da vida, como árvores que somos, forças da natureza que não
precisam de uma data única para lembrar aos outros nossa importância."

(Martha Medeiros)

segunda-feira, 3 de março de 2008

Não à filantropia


A angústia que a tomava era tão grande que ela pensou que só a euforia fosse capaz de calá-la. Seu estilo sóbrio, entretanto, não combinava com sorrisos bobos e sem razão. Seus sorrisos eram seus tesouros, não os saía distribuindo por filantropia. Achava até que tinha ciúme dos seus dentes, era uma boa explicação para justificar a resistência em mostrá-los. Decidiu ser outra naquele dia. Pôs o vestido com cheiro mais forte de naftalina, aquele que há muito não usava por achar a cor alegre demais. Foi ao lugar mais ensolarado, sem os óculos escuros dessa vez, e soltou a gargalhada mais forte e sonora que conseguiu, fazendo até eco dentro dela.

Voltou para casa cabisbaixa amaldiçoando o vestido, a gargalhada e a naftalina que irritava o seu nariz, vermelho de tanto coçar. Definitivamente não nascera para a alegria, sabia disso. Mas achou que não custava refazer algumas de suas certezas. Foi a um bar e reafirmou outra certeza, vodka era mesmo uma merda.

sábado, 1 de março de 2008


- Decidi me mudar.
- Mas acabamos de comprar essa casa, querido.
- Eu sei, nem estou falando dela exatamente.
- E fala do que então?
- Do seu coração, quero sair dele. É pequeno demais, me deixa claustrofóbico. Abre a porta pra mim?